domingo, 14 de outubro de 2012

10KKKKK


Seis horas da manhã. Seis e cinco, mais precisamente. Abro os olhos, e está tudo muito escuro e frio. O alarme deveria tocar dali 55 minutos, mas a ansiedade do acontecimento que se daria naquela manhã e o medo de perder a hora não me deixaram voltar ao sono do qual emergi. Enrolei enquanto pude, e levantei pontualmente 7 horas. Mentira. Levantei 7h15, porque, por algum motivo bizarro, assim que deu 7 horas, me deu um sono que desmaiei pelos próximos 15 minutos. Mas enfim, levantei. E me vesti, e comi meus últimos carbohidratos. E dei um beijinho na Mi, e parti. Andei até Barceloneta, muito focado sempre, e foi como se o tempo tivesse passado instantaneamente, porque em poucos segundos já estava me aquecendo atrás da linha de partida.

Vou tentar ser rápido no meu discurso. Ao menos mais rápido do que fui nesta corrida. Prometo. Mentira de novo.

Então tá. Começa a corrida, e eu lá, parado. Isso é normal, devido ao grande número de pessoas que estão na sua frente. Igual trânsito em São Paulo, quando abre o sinal, e a gente só anda quando o sinal fechou de novo. Mas depois de quase dois minutos e meio, finalmente cruzei a linha de largada.

Eu costumava correr assim: primeiro eu disparava, até o km 2,5. Aí rastejava de volta até o km 2, procurando meu pulmão, e o resto da corrida eu andava. Corria aqui e ali, mas geralmente 90% da corrida era andada. E assim que eu cruzei aquela linha de saída, disse pra mim mesmo que iria correr os 10km. Nem que levasse a semana toda. Armei, baseado nesta resolução, minha estratégia.

Comecei correndo num ritmo bom pra mim, o que significa, em termos técnicos, um ritmo de 8m/km mais ou menos. Não deixaria que os gritos, a música alta e frenética e os demais concorrentes me fizessem sair do ritmo pré-estabelecido. E fui firme, nos primeiros dois quilômetros. Firme mesmo. Não me deixei alterar. E olha que era duro, muito difícil mesmo, ver um bando de gordinho com tênis não próprio para corrida, trios e quartetos correndo e conversando feito gralhas e idosas e idosos, todos me passando e num ritmo muito maior que o meu. E foi assim que, em minutos, vi quase todos os corredores me ultrapassando, e abrindo uma vantagem insuperável.

Inclusive uma senhora, que me passou com certa dificuldade, tadinha, no alto dos seus prováveis 96, 97 anos. Dava pra ver o esforço impresso em seu rosto. Quando ela estava há uns 50 metros de mim, ela teve um mal súbito, e caiu ali, dura. E, mesmo assim, caída e dura, a filha da puta ainda era mais rápida que eu. Mas enfim, eu estava focado de verdade. Há muito tempo estava me preparando para esta volta às ruas.

Depois do km 3, passei por um grupo de 4 homens que estava sentado à beira da nossa passagem. Eu, de cabeça baixa, correndo lentamente, ouvi meu nome sendo gritado por eles. Isso porque meu nome aparece no dorsal - número de peito dos corredores. Um deles disse: levanta a cabeça, Fernando! Você vai conseguir! Isso me deu uma força tamanha que não posso nem começar a expressar. Pena que não pude parar para explicar para ele que eu estava correndo com a cabeça para baixo porque não queria que minha língua arrastasse no chão, e estava usando meu queixo para segurá-la. E segui em frente, fazendo um número 2 com a mão esquerda. Não, não era o "v" da vitória. Era o "v" de "ventrículo esquerdo", que já não funcionava.

À partir daí, a corrida entrou numa certa monotonia. Mas uma monotonia boa, porque é quando seu corpo aceita o desafio e topa o sacrifício. É quando, geralmente, quem toma conta é o emocional. Aí, como diria minha amada filha quando tinha 4 aninhos: aí fodeu, né pai? Até o km 5 foi uma confusão de emoções. Eu estava com fones de ouvido, escutando músicas previamente e cuidadosamente selecionadas. Eu me emocionava, ria, chorava, cantava, dançava, tudo junto. E, ao passar do km 5, voltei ao meu estado de consciência normal - que já é bem anormal - e continuei me focando na corrida.

Passei a admirar todo o caminho. Os prédios, construções, o parque, a cidade. Enquanto isso, comecei a ultrapassar várias pessoas. Muitas daquelas que haviam me passado no princípio da corrida, e que me causaram a raiva que já descrevi. Essas pessoas estavam já andando, sem fôlego algum. Passei por elas e, do alto da minha sabedoria e experiência adquiridas em mais de 35 anos de vida, sorri para elas. E pensei: se foderam!

No km 7, alcancei um senhor catalão, que caminhava e ofegava bastante. Preocupado com seu estado físico, resolvi parar para ver como ele estava. Mas minha mente, focada na corrida, mandou o velho à merda e continuou nos 8m/km. Dali um tempo, eis que o velho me passa de novo, num pique assustador. Pique este que durou apenas alguns segundos. E lá estava de novo o velho ofegante, caminhando. E lá ia eu ultrapassá-lo de novo. Mas desta vez, mente e alma mandaram o velho às favas. Essa brincadeira continuou até o km 8, quando o velho finalmente me viu ultrapassá-lo e disse: continue, que eu desisto. Não aguento mais. Desta vez, minha mente entendeu o recado, e usou o fato como combustível para o foco que estava se esgotando. Já a alma mandou o velho se foder pela sexta vez.

O km 9 foi o pior. Eu via que estava perto, bem perto da linha de chegada. Mas não diminuí o ritmo, jamais. E foi na última reta, antes de chegar, que, ainda correndo, olhei para esquerda e vi a praia, e o mar, e o céu. E me senti vivo. Vivo de verdade. Eu me senti ali, correndo, sentindo as dores que sentia, notando cada gota de suor que transbordava meus poros. Um momento inesquecível.

Perto da chegada, vi a Mi, ali toda feliz, me esperando. Ela, com o celular na mão, pronta para tirar uma foto do atleta aqui. Ao lado, nossa companheira de piso, Irina. Abri um sorriso imenso, olhei para elas e dei aquela piscadela marota. A Mi apertou o botão. E eis a foto do atleta:


Tá me vendo? Não? Estou atrás da Leila, a filha da puta de azul. Estou pensando até em imprimir e enquadrar esta foto. E enviar pra porra da Leila.

Mas daí a Mi se redimiu em seguida, e tirou minha foto quando eu estava para cruzar a linha de chegada:


Vocês conseguem ver minha cara de felicidade e alegria pelo desafio batido? Não? Nem eu.

Mas o importante é que cheguei. Ouvi o locutor dizendo meu nome, e cheguei. Dez quilômetros, sem parar. Não andei, não marchei. Só corri. O tempo inteiro. Estou sim orgulhoso de mim, e não tenho nenhum problema em dizer isto. Quem me conhece sabe que não me dou bem com elogios, e prefiro tirar sarro de mim mesmo quando estou escrevendo um texto ou contando uma história. Desta vez, ao menos por um parágrafo, vou ser sincero. Tive orgulho de mim mesmo.

Ao chegar, tirei o chip de cronometragem e fui pra fila dos presentinhos, que sempre tem depois das corridas. Primeiro item, água! Hmmm, água. Não bebia água desde o km 5! "Não temos mais água, senhor." Bosta. Segundo item, lanche. Geralmente eles dão barrinhas de cereal ou frutas. "Só sobraram esses sacos de batata frita Lays sabor barbacoa, senhor." Bosta. Terceiro item, suco de laranja ou limão. "Acabou tudo, senhor." E o que é que tem pra beber então? "Cerveja, senhor." Cerveja? "É, senhor." Desce uma breja gelada então. E bebi a cerveja. E eu não bebo! Mas enfim, eu tinha acabado de correr 10km. Precisava beber algo. E bebi. Para provar que o fiz, aí está a foto:


Enfim, essa foi minha corrida 10K. Eu voltei pra casa caminhando, feliz da vida. Obviamente, como era de se esperar, com o passar do dia comecei a sentir as dores do esforço. Primeiro as costas, depois o joelho, as coxas, o mamilo direito - sim, o mamilo direito -, os pés, as mãos, os cílios, tudo. Dói tudo. Mas isso não é o bastante para me parar. Prometo que vou treinar mais, e me cuidar mais, e me preparar melhor para a próxima corrida. Prometo que farei tudo isso. Logo que sair do coma.

ps.: Este artigo foi gentilmente digitado pela enfermeira Dona Girona, que transcreveu os bips que eu emitia através do meu eletrocardiograma.