Continuando a novela do meu NIE, que já se estende por muito tempo, tempo demais. Depois daquela terça-feira, quando quase entrei na Comisaria, encafifei. Resolvi que não iria abaixar a cabeça. Decidido, aproveitei o dia seguinte, quarta, feriado aqui em Barcelona. Aqui, tanto domingo quanto feriado, tudo fecha, tudo para, nada funciona. São dias para se ficar em casa, namorando, assistindo tv, falando com a família pelo msn, ou adiantando trabalho. Fizemos tudo isso.
Com a energia renovada, preparamos, na noite de quarta, o despertador. A ideia era levantar o mais cedo possível, andar até a Comisaria - para economizar na passagem do metro - e aguardar minha vez. Revisei os papéis, chequei a mochila. Tudo certo. Deitamos felizes, dormimos rapidamente, mas, para mim, o sono foi leve e turbulento. Acordei várias vezes durante a madrugada, pensando ter perdido a hora. Cheguei a sonhar comigo acordando e percebendo que perdi a hora. Dormia mais um pouco, levantava assustado, pensando que havia perdido a hora. Duas, três, três e meia da manhã. Finalmente consegui relaxar, após checar o alarme, que na verdade são 3, com intervalos de 5 minutos entre cada toque. Deitei. Dormi.
Acordei quando tudo ainda estava escuro. Mais uma vez acordei com medo de perder a hora, pensei. Chequei o celular. Dez da manhã. Perdi a hora.
Não iria nem me dar ao trabalho de tentar, no meio da manhã, uma vaga na fila. Preferi ficar em casa, trabalhando, enquanto a Mi "canguruzava". Entre um site e outro, repetia mantras que diziam, em resumo, que eu precisava, sem falta, acordar cedo no dia seguinte. Após o jantar, repeti todo o processo da noite anterior. A Mi tentava me deixar otimista. Eu, preocupado, enquanto refazia etapa por etapa da preparação, desde a checagem da papelada até a configuração do alarme, cantava meus mantras mentalmente. A noite, novamente, agitada, com os mesmos pesadelos, a mesma sensação. Até que algo estranho aconteceu. Eu levantei incomodado com alguma coisa. Um som. Estridente. Repetitivo. O alarme! Consegui! Não precisei sequer dos outros dois. Mais do que depressa, estava pronto. A Mi acordou com a barulheira que fiz enquanto tentava não fazer barulho algum. Ela me desejou boa sorte, nos beijamos e saí.
Estava escuro e frio. Apesar disso, não peguei pesado com as roupas que vestia, pois a caminhada de 40 minutos é pura subida, e andar esquenta muito. Cantarolando, segui até o Arco, virei na Trafalgar à esquerda, segui sempre em frente até a Urquinaona. De lá, avistei a Praça Catalunha, passei por ela e, um quarteirão depois, virei à direita na Balmes. Sobe, atravessa, anda, espera o sinal, acende um cigarro, anda, tira gorro, acende outro cigarro, põe o gorro, e cheguei. Eram exatamente 8h02 quando dobrei a esquina e encontrei minha grande amiga: a merda da fila gorda. Entrei na mesma exatamente (mais ou menos) no mesmo ponto onde, terça, comecei minha aventura. Mas, desta vez, os portões não haviam sido abertos. Portanto, minhas chances eram boas. As pessoas chegavam aos montes.
Uma senhora de cerca de 40 anos, para menos, chegou de carro por aquela rua. Ali mesmo, sobre a calçada, estacionou e desceu. Logo depois, desceram também uma outra moça e um menininho, com cerca de 3 anos, talvez. Ela, claro, chegou atrás de mim, perguntou se eu era o último. Eu disse sim. Ela, então, começou num papo animado com a amiga, enquanto o filho, que gracinha de menino, se debruçava no meio fio, tentando catarrar. A cada cusparada bem sucedida, a mãe o parabenizava, toda orgulhosa. Mahala, mahala uiê!, sei lá que língua era aquela. E depois, ela voltava pro papo. Quando o pirralho percebeu que a boca já estava seca, começou a se afastar, andando para trás, sem olhar, até encostar na perda de quem? Claro. Na minha. Eu pensei em dar uma joelhada na cabeça do guri, mas acredito que a prisão espanhola deva ser pior que aquela fila. Resolvi dar aquela chacoalhada de perna, sabe, quando você pisa numa pilha de "merlim", e sacode a perna pra se livrar do exceso? Foi o que fiz. E deu certo! Me livrei do moleque.
No instante seguinte, percebi que a fila começou a andar. E consegui avançar bastante. Eram 08h36. Após me certificar de que o pentelho havia sossegado, saquei meu celular e me concentrei no Sudoku. Alguns minutos depois, 08h53 para ser exato, levei um cutucão no ombro. Alguém me chamando. Virei já pronto praquela minha conversa, de balançar a cabeça dizendo Si, No, Mierda, ou talvez um No tiengo, até meu amigo invisível fazer uma chamada no celular. Rodei o corpo 180 graus e quem eu encontro? A Mi! A danada esperou eu sair, se arrumou e foi ao meu encontro, só pra me fazer companhia. Não é linda essa minha esposa? E ainda me levou um copo de Coca Zero. Linda demais, ela.
Começamos a conversar, ela me explicou todo o plano dela, eu lhe contei a história do catarro. E nada da fila andar. Ela decidiu ir comprar um café para ela. Aquela manhã estava realmente bem fria. Poucos segundo depois de ver a Mi sumindo na esquina, não é que a fila resolve andar? E andou bem, bem até demais. Fiquei com receio de entrar na Comisaria e não deixarem a Mi passar depois. Quando faltavam cerca de 15 pessoas na minha frente, a fila parou novamente. Ufa. Agora é esperar pela Mi e torcer para uma nova andada. E a Mi não chegava, e não chegava. Teve uma hora, inclusive, que um policial bravo e uma senhora bacana percorreram os primeiros 50, 60 metros de fila, verificando os papéis das pessoas, para possíveis desavisados ou furadores de fila - pessoas que seguram o lugar na fila para, mais tarde, trocar com colegas ou a família, o que causa a tal fila gorda. Por sorte, fui atendido pela senhora. mostrei os papéis, Vale, é aqui mesmo, ela disse. Fiquei aliviado, e mais ainda quando vi a Mi chegando. Momentos depois, a fila andou mais, e mais, e mais, e, exatamente 10h15, pegamos a senha A91 e entramos na Comisaria.
Quer dizer, exatamente 10h15, pegamos a senha A91 e entramos na garagem da Comisaria. Lá nos sentamos e aguardamos. Como já havia contado no post anterior, é a garagem da Comisaria, mesmo. Carros, motos e nós. Sem painel eletrônico, água, banheiro, nada. Depois que a sala improvisada encheu, o tal policial bravo apareceu, e explicou as regras. Ele havia entregado senhas que continham a letra A e B seguida de um número. Ele chamaria a letra e o número, a pessoa teria que se levantar, buscar outra senha com ele e se dirigir, agora sim, para a sala da Comisaria. E começou. A01. A02. A03. A04. Quando ele falou A05, até a pessoa com a senha A60 já estava de pé lá na frente. Ele, com cara de merda, parou de contar e mandou todo mundo voltar para o lugar. Me senti na escola novamente. O pessoal foi voltando, até que ele retomou a chamada. E parou no A25.
Ficamos lá conversando, lendo jornal, comentando sobre as pessoas que lá estavam, enfim, passando o tempo, que não passava. De repente, mais pessoas começaram a chegar. Era um bom presságio. Lá veio o policial bravo de novo, e retomou do A26. A27. A28. Eu imaginei que, desta vez, ele chamaria até o A50, e assim por diante. A49. A50. A51. Opa, que maravilha! Será que chega no nosso número? A76. A77. A78. Vai meu filho, falta pouco. Quando chamar o A89, levantamos, disse para a Mi. A85. A86. A Mi levantou. A87. Fomos para o corredor oposto, onde, no final, estava o policial. A88. Diminui a marcha para não provocá-lo. A89. Falta pouco. A90. Já estávamos na frente dele. A91. Quis gritar bingo, mas achei melhor entregar nossa senha e aceitar a nova silenciosamnte. Número 212. Eram 10h50.
Andamos em direção ao prédio da Comisaria, calmamente, comemorando mais uma etapa vencida. E agora? O que nos aguarda? No caminho entre a garagem e o prédio, falei pra Mi, Mi, olha o batman! Era uma freirinha, baixinha, que mereceu um Óóó da Mi. Voltaremos a falar dela em breve.
Chegamos por um corredor que terminava numa sala de tamanho médio. Várias cadeiras pretas, 12 mesas de atendimento, um painel eletrônico que marcava 112. Minha senha era 212. Apenas 100 números nos separam do atendimento, que, por si só, ainda era nova dúvida. Nos sentamos e esperamos. Fizemos planos de viagens, falamos (eu falei) mal das outras pessoas, tiramos sarro (eu tirei) das outras pessoas, jogamos (eu joguei) Sudoku, e sempre de olho no painel eletrônico. A certa altura do campeonato, fiz algumas contas e previ que seríamos atendidos tal hora. A Mi fez a sugestão dela. Não apostamos nada porque a grana é curta. E o painel piscando. O atendimento era até que rápido. Eu controlava o score. Faltam 80. Faltam 70, 60. Nãnão, contei errado, faltam 50.
Eu sei que é chato, mas eu realmente estava ansioso. Veja bem, meu visto de turista vale por 3 meses, e este período termina no dia 28 de dezembro. Então, essa contagem regressiva, para mim, era decisiva mesmo.
A sala esvaziava rapidamente, e, de repente, uma multidão chegava e lotava o local de novo. Na última entrada em massa que vimos, quem eu vejo se aproximar de mim? Sim. A freira. Eu falei Mi, quer apostar quanto que ela vai se sentar do meu lado? Dito e feito. Tá vendo, Nando, é um sinal, ela vai te converter!, disse a Mi. Me converter eu não sei, mas ela já me deu uma chicotada com o terço de marfim que saiu até fumaça da carne, confessei. Quanto mais eu não rezo...
Quando o painel chamou o 212, fiquei aflito. Me deu um branco, não sabia onde era a mesa 1, que faria meu atendimento. No caminho, tentei me recompor e, ao sentar-me na cadeira, desembuchei a falar e fazer piadas. Ela perguntou o que eu gostaria de solicitar. Entreguei o papel que indicava o começo do meu processo. Ela pediu meu passaporte. Entreguei, e perguntei se precisava de fotocópia. Não precisava. Ela pediu o número do NIE da Mi. Entreguei a folha original. Perguntei se ela queria fotocópia. Ela disse que não, com um ar de chateação. Disse Olha, se quiser é só falar, porque eu trouxe fotocópia de tudo!, e finalmente ela sorriu. Claro que eu disse em castelhano, e não sei se ela riu da piada em si ou da minha cara. Mas. Entramos na sala do atendimento às 12h19. Exatamente 12h24, cruzamos o portão de saída da Comisaria.
Conseguimos!
Mas a novela ainda tem um capítulo final, mas tipo capítulo final de novela das sete, com casamentos e nascimentos, e não com solução de tramas e assassinatos, como em fim de novela das oito. A partir de 10 de janeiro de 2011, minha tarjeta estará pronta, em outra Comisaria. Devo retirar o documento a partir desta data, levando o canhoto do protocolo e a guia paga de 10€. E fim! Já aproveitamos o ensejo e pagamos a taxa. Com este canhoto, já posso ficar tranquilamente em Barcelona pelos próximos 5 anos. Ainda preciso andar com meu passaporte, mas as filas e chateações e burocracia referentes à esta documentação, aparentemente, acabaram.
Queria contar de como a cidade está bonita, toda enfeitada de Natal, ou Navidad, ou ainda Nadal. Mas vou deixar para o próximo post, com muitas fotos e vídeos. Enquanto isso, uma amostra do que vem por aí!
Besos longos
Nando (e Mi, rindo ainda da história da freira)
Fantástico! Você consegue até transmitir a ansiedade! Queria parar pra fazer xixi e não consegui. Fiquei me movimentando no sofá, sabe, querendo ter feito leitura dinâmica, pra chegar no final logo? Em algum post, coloca um mapinha do google mostrando o trajeto.
ResponderExcluirTambém estamos bem e amamos vocês.